Qualquer pessoa que acompanhe, mesmo que de forma superficial, as movimentações que ocorrem na cultura hip hop brasileira, conhece ao menos um pouco de Raffa Moreira. Amado. Odiado. Incompreendido. Cultuado. Em 2018, Don L declarou que o rockstar de Guarulhos era o artista mais importante do Brasil no momento, chegando a comparar sua notoriedade com a que Mano Brown possuía em 1997 e a que Emicida tinha em 2012, mas de “um jeito totalmente diferente”.
Em junho de 2021, sua lendária faixa com Klyn, “Fiat 1995”, bateu a importante marca de 1 milhão de views no YouTube. Para os padrões do rap mainstream, 1 milhão de views não chega a ser um número extraordinário, o próprio Raffa vem colecionando milhões desde 2017, quando alcançou o patamar de ícone do rap brasileiro.
O curioso nessa marca é justamente o fato de que a faixa atingiu esse número somente 5 anos após o seu lançamento. Precisamos falar sobre como o grande público brasileiro
consumia rap em 2015, ano do lançamento da música: Enquanto no cenário internacional o trap ganhava destaque e novas vertentes como o cloud rap tomavam conta da internet com artistas como Lil B (uma das maiores influências do Raff), A$AP Rocky, Yung Lean, etc… os
principais nomes do hip hop brasileiro, os que mais tocavam, faziam shows e lucravam, eram MCs majoritariamente brancos que adotavam uma sonoridade focada no boombap. O coletivo Damassaclan, Oriente, Cacife Clandestino, Cartel Mc’s, 3030 e Costa Gold podem ser citados como exemplos dos mais populares daquele período.
No vídeo de 2019, “A Odisseia Raffa Moreira”, produzido por Henrique Jacks do canal Quadro Em Branco, Jé Santiago da Recayd Mob e Delatorvi foram convidados para falar um pouco sobre a influência do Raffa em suas carreiras e no cenário do Rap, em geral. Enquanto Jé, a voz do refrão de “Plaqtudum”, hit que foi um dos pilares da popularização em larga escala do trap nacional, declarou que Fiat 1995 foi uma faixa excepcional, divisora de águas em sua carreira, Delatorvi comentou justamente sobre o recorte racial e as facetas políticas na obra do Raffa, citadas acima:
“O foco dele na track é falar sobre essa falta de representatividade racial, na primeira música eu já senti isso, entendeu? Era notável que a revolta dele era falta de representatividade. Falta de errantes lá, tá ligado, mano? Se fosse pra ter errantes, que tivessem os negros em maioria, e nessa época, em meados aí, quem tinha de negro, mano... ce tá ligado, era Emicida, Rashid, Projota… com todo o respeito a todos os outros artistas, maschegando num patamar tão grande quanto outros, tipo, quiçá Oriente, Cone Crew, Cacife Clandestino, tá ligado? Esses grupos assim, Cartel, maioria eram representatividade branca, a gente sentia falta, então precisou de um negro falar de forma cômica, como o racismo atinge a própria música negra do Brasil, que seria o rap, tá ligado? Então ele trouxe isso dentro de um subgênero. Fiat 1995? Bagulho político. (...) A gente precisava de auto estima, motivação… O Raffa é auto estima.“
- Delatorvi, em depoimento para o canal Quadro em Branco, 2019
É fundamental falar sobre isso, pois destaca a importância da semente que Raffa plantava ali. A sonoridade, a estética, a melodia, a lírica e a atitude trazidas por ele e Klyn em Fiat 1995 eram anos luz à frente do tempo. “Estão muito longe de mim...”, Ele já cantava sobre esse distanciamento do mainstream desde o início. Praticamente ninguém estava fazendo trap no Brasil naquela época, salvo algumas exceções no underground. O rapper de São João de Meriti, Marcão Baixada, tem registros fazendo trap já em 2013, mas infelizmente é um dos que foram precursores e não recebem o devido reconhecimento. Hoje o trap conquistou seu trono absoluto no hip hop brasileiro: Todos fazem e consomem, o jogo virou completamente, e Fiat 1995 tem boa parcela de contribuição nisso. o rapper Klyn, também pioneiro no trap nacional, marca presença na música com versos fortes e diretos, tocando a ferida sem pensar duas vezes e tornando a obra ainda mais política:
É uma faixa atemporal que narra uma situação lamentável, vivida diariamente por pessoas de cor ao redor do mundo, por gerações e gerações. Em 1990, na primeira temporada da série norte-americana, Um Maluco No Pedaço, os personagens Will e Carlton sofrem uma situação bem semelhante a que Raffa narra em Fiat 1995, abordados e detidos pela polícia num carro, dirigindo a 10 km/h.
Conversamos brevemente com Marcelo Moreira, irmão do Raffa, e ele nos contou um pouco mais do contexto da letra.
“A música fala de dois enquadros, um ele foi parado, depois levado pra delegacia, lá ele ficou por mais de 6 horas. Esse foi mais tenso pra mim porque na época a gente não estava se falando. Minha mãe ligou pra mim e pediu pra eu ir lá mais pra acompanhar meu pai. Ela sabia que eu e ele não teria como conversar nada. Esse foi o primeiro, acho que foi 2014. Nesse período ele não foi pra cela, mas ficou numa espera reservada, com grade. A merda é que ele tava alterado, xingou os caras, aí os caras foram rigorosos. O próprio delegado tava meio puto por que ele tinha esperar até os caras da guarda levarem a maconha até algum órgão lá, depois voltar, fazer a papelada, chatice. Fui lá falar com ele mas foi uma merda... A gente tava muito tretado. Mas não teve nada fora isso, ele tava de boa, num bairro de playboy aqui em GR (Guarulhos). O segundo foi quando apreenderam o carro. Nesse eu só acompanhei conversando com a minha mãe. Foi justamente na fase em que ele trabalhava como músico de apoio.”
- Marcelo Moreira, em mensagens via Twitter com a The Music.
Por entre tormentas e polêmicas, mas com muito trabalho duro na pista, Raffa deu a volta por cima da maioria dos que o desmereceram e hoje não precisa provar mais nada a ninguém. Construiu uma fanbase fiel, com milhares de jovens que se sentem representados por sua arte. Poucos artistas brasileiros possuem tanto engajamento orgânico, conceito e carinho dos fãs como Raffa Moreira tem. Ele os descreve como fãs reais. Com isso, muitos estão se mobilizando pra que clássicos como Fiat 1995 recebam seu devido valor. E o merecido milhão chegou. 5 anos depois, mas chegou. Uma importante página na história do rap nacional foi escrita e segue sendo apreciada. Eternamente Jovens!
Artista recomendado: Guto
Nascido em Cuiabá (MT), Guto é um Rapper, MC de batalha de Rima, Poeta Marginal, Escritor e Compositor. Adepto à filosofia da Arte A Partir do Lixo, Guto utiliza no processo de composição musical aquilo que possui em sua volta como forma de evidenciar a Arte como manifestação presente em todas as estruturas. Seu primeiro EP "Quarentena" (2020) foi feito a partir do celular, assim como seu segundo e terceiro EP respectivamente "Crônicas Em Chamas: A Vida é Uma Aventura ou Nada" (2021) e "A Melancolia Existente Por Trás da Tampa de Esgoto de Superchoque" (2021). Além disso, é Co-Fundador do grupo de Hip-Hop e Poesia Marginal "RAPENSEMT" (2020), estudante de psicologia da UFMT e integrante do coletivo negro universitário KillomboCassangue
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